sexta-feira, 2 de setembro de 2011

AURORA E A QUESTÃO DE 8 - PARTE 2

Por José Cícero
Foto inédita: Grupo de Jagunços de Floro Bartolomeu com Conde Adolfo durante a demarcação das Minas do Coxá

Aquarela de autoria de Enoque Pintor
Imagens recentes da Matriz e do Casarão do Cel. Xavier onde morou o cel. Paulo Gonçalves

A Invasão da Cidade:

Notícias que chegavam à boca pequena davam conta de que uma invasão estava prestes a ocorrer. Jagunços da pior espécie e das mais diversas partes entrariam em Aurora para um massacre. Um serviço encomendado. Um acerto de contas. Um desatino sem paralelo em toda a história do lugar.

Pouco mais de 600 criminosos até do Pajeú pernambucano e do riacho do navio marchariam para o vilarejo pacato e desprotegido. O major Zé Inácio, o temível líder do Barro seria o algoz comandante dos bandoleiros ajudado que foi(como se não bastasse) pelos seguinte subchefes: Raimundo dos Santos, Neco do Batedor, Praxedes Pereira, Belo Lacerda, Firmino Pescoço, Cândido Ribeiro Campos e Francisco Pereira de Lucena( o famoso e temível Chico Chicote). Ainda com o decisivo patrocínio de outros tantos da circunvizinhança, tais como: Joca do Brejão da Barbalha, Coronel Santana da Missão Velha, Domingos Furtado do Milagres, Chico Chicote de Brejo Santos, Raimundo Cardoso de Porteiras, Felinto da Cruz Neves de Santana do Cariri, Gustavo Correia Lima de Lavras da Mangabeira, padre Augusto Barbosa da Serra de São Pedro(Caririaçu), além de Floro Bartolomeu(Juazeiro). Todos estes forneceram jagunços perigosos com vistas à invasão, dentre outros poderosos coronéis que optaram por ficar no anonimato.

Um verdadeiro complô alimentado por desavenças particulares e interesses políticos e econômicos dos velhos caudilhos proprietários de terras e de jagunços. Grandes protetores de cangaceiros de Aurora, assim como de boa parte da região. Tudo sob o pretexto de auxiliar Marica Macedo do Tipi.

O próprio Nogueira Acioli (presidente do estado) cooptado diante da questão, ordenara que os poucos soldados(60 no total) retornassem imediatamente a sua origem. Os mesmos se encontravam na vila à serviço da ordem pública sob o comando do delegado Florêncio. Estava pelo jeito, o chefe do governo, mancomunado com os que arquitetaram aquele plano que destituíra à força o então intendente municipal o cel. Antonio Leite Teixeira Netto (Totonho de Monte Alegre).

A partir do estopim da questão, um acontecimento posterior que ficou conhecido como “O fogo do Taveira” ocorrido no dia de 17 de dezembro daquele malfadado ano. Sendo o combustível final para todo o episódio e seus desdobramentos. Fato que, curiosamente coincidira com a polêmica demarcação das minas do Coxá, sob o comando do Dr. Floro Bartolomeu da Costa representante direto do padre Cícero Romão Batista, proprietário daquelas terras.

Afinal, como se explica que os jagunços de Floro que estavam no território de Aurora bem ao lado do conflito do Taveira não tenham também tomado parte do conluio que invadiu e saqueou a cidade, derrubou o velho Totonho de Monte Alegre e em seu lugar, colocara em 23 de dezembro de 1908 Cândido do Pavão, rendeiro-amigo do padre Cícero. Ele, que por sinal, tomava conta das terras do padre que na época, correspondia a toda região do Pavão e do Juiz. Um imenso latifúndio que ia de um lado a outro do rio Salgado, perfazendo seis léguas e meia de cada margem. Tudo isso ainda hoje soa como algo no mínimo curioso, sobretudo para os que não acreditam muito em coincidências.

Afinal, tido como um homem de paz, por que o padre Cícero não interveio no sentido de evitar há tempo tamanho conflito? Pelo jeito os patriarcas dos Gonçalves e dos Quezados já tinham a invasão de Aurora como certa. Não lhes restaram outra alternativa senão deixar às pressas o lugarejo antes mesmo que o sol raiasse no horizonte daquele mundo escuro. A cidade ficaria ao Deus dará.

A paz da Aurora passava a ser uma grande incógnita. Cada um se protegeu como podia.

A Fuga para o Juazeiro do padre Cícero:


Madrugada escura e gélida. Alguns poucos animais estavam sendo cuidadosamente selados para a viagem. O coronel Sebastião Alves Pereira em seu traje de gala, quase um marinheiro da caatinga orientava os ajudantes quanto aos “arreios” dos muares. Do outro lado, o cel. Paulo Gonçalves também já se apressara com os seus, vindo do lado da rua grande que dava para o Tunga. E por precaução se inteirava dos últimos detalhes. Deu ordem e recomendações a todos os empregados que ficavam. Era um homem precavido em tudo que fazia.

Tinha lá também os seus contatos. Sabia que a invasão de Aurora era algo inevitável. Pouco tempo inclusive. Razão daquela viagem programada às presas.

Informações sigilosas apressaram ainda mais aquela empreitada. Suas fontes eram absolutamente seguras e confiáveis. Era preciso sair com celeridade, discrição e segurança.

Alguns outros foram comunicados e se refugiaram nas fazendas distantes, quando não nos municípios vizinhos. Não era inteligente a espera enquanto resistir era, de fato, uma temeridade...

Com eles, iriam também as esposas que antes da partida faziam em conjunto e genuflexas, as suas primeiras e costumeiras orações matinais, diante do oratório dos santos cuidadosamente iluminados por castiçais de velas num canto da ampla sala do grande casarão. Levariam com elas uma criança e um montão de saudade que lhes cortavam o coração.

A imensa sala estava iluminada por grandes candeeiros de azeite. Belíssimas cadeiras de couro curtido e de madeira de estofados estavam distribuídas para todos os lados como que esperassem visitas. Do outro lado a escrivaninha de gavetas do velho coronel estava esvaziada. A organização doméstica primava mais pelo conforto do que pela opulência. Mas era uma casa deveras organizada e elegante para os padrões da época.

Uma luz opaca a que todos estavam acostumados clareava o interior da grande residência dos coronéis. Movimentação atípica, som de passos apressados era possível ouvir a todo instante sobre o piso de madeira do segundo andar do velho sobrado. A criadagem finalizava às pressas os preparativos para a viagem.

Ninguém sabia ainda sequer da invenção da luz elétrica. Os criados ficariam a tomar conta da residência. E caso fosse preciso, deveriam se refugiar nos sítios vizinhos, propriedades de ambos os coronéis. Tudo estava preparado nos seus mínimos detalhes para uma possível emergência. Todos estavam apreensivos e desejaram boa sorte aos que se iam, quando finalmente, o grupo partira na direção do rio.

Havia uma certa preocupação explícita nos semblantes das mulheres que também fariam aquela viagem. Foi uma partida em que se evitou qualquer praxe de despedida. Apenas um aceno de mãos espalmadas... Votos de boa viagem e até breve talvez..

Com as últimas chuvas, boa parte do percurso haveria de ser feito a pé devido a precariedade das estradas dos almocreves que naqueles anos estavam uma lástima. Principalmente nos locais onde os próprios animais deveriam ser puxados pelas rédeas.

Dona Mariquinha esposa do coronel Sebastião Pereira e Dona Siamina esposa do coronel Paulo Gonçalves. A primeira era filha de Napoleão Quezado, enquanto a segunda do coronel Sebastião Pereira. Como se percebe um entrelaçamento familiar dos mais sólidos, também sob o ponto de vista genealógico.

Apenas uma criança iria com o grupo – Antonio Gonçalves Pinto(Tonheta Gonçalves), filho de Paulo Gonçalves e dona Siamina na época com aproximadamente 2 anos de idade. Tempos depois já homem feito ‘Seu Tonheta’ (como era conhecido) se tornaria prefeito de Aurora em duas ocasiões ( 1952 e 1960) sucedendo na política o próprio pai – Paulo Gonçalves Ferreira que exerceu o posto de prefeito em 1935. Seu Tonheta também se notabilizou como um grande comerciante de cereais, algodão e gado.

E a viagem prosseguia...

Como único ajudante levariam um homem de cor que a historia infelizmente não registrou seu nome. Mas era um dos bons e da inteira confiança do grupo que, há muito tempo trabalhava para o cel. Paulo Gonçalves. Além de forte o tal homem conhecia bem o caminho como a palma da mão, ele diria. Fora em outros tempos, ajudante de antigos tropeiros que rasgaram as bibocas do Cariri e mais três estados transportando de um tudo sobre o lombo de animais.

As estradas estavam péssimas, principalmente depois da grande invernada registrada naquele final de ano. Não eram estradas, apenas caminhos e veredas abertas pelo pisoteio repetitivo dos animais tropeiros dos viajantes, nas suas eternas idas e vindas do Cariri para o litoral e parte do Rio Grande e de comerciantes paraibanos vindos da Borborema. Até para os valentes carro-de-bois estavam instransponíveis.

Dona Siamina Gonçalves e Mariquinha Quezado carregavam, além da fé cristã algumas promessas como diziam, a pagar junto ao santo padre do Juazeiro e outras devoções prometidas a todos santos protetores da madre igreja de Roma. Os homens, por sua vez, levariam certamente além de preocupações políticas e comerciais, letras de créditos e outros recursos na busca de lugares mais seguros. Longe o bastante das mãos sedentas de roubos da jagunçada.

Aurora era um povoado sem estrada e quase isolado. O trem ainda parecia um sonho distante e para poucos. Uma utopia ao somente ao alcance dos mais bem informados sobre as novidades oriundas da pioneira ferrovia de Baturité, De modo que, aquela viagem era quase uma aventura. Se bem que toda viagem naqueles tempos difíceis era no mínimo uma prova de fé, resistência e coragem... Mas aquela em especial, era um puro ato de sobrevivência. Sobretudo levando-se em conta o fenômeno do cangacerismo e da violência que na época se espalhavam por todos os recantos dos sertões nordestinos. E o Cariri não era nenhuma exceção aquela regra macabra.

A formação e o patrocínio de grupos de jagunços e mal-feitores há muito parecia ser uma prática corriqueira por parte dos poderosos coronéis da políticos sertaneja. Um meio de vida. Um negócio lucrativo que de quando em vez os levariam ao poder. Um investimento seguro realizado por boa parte dos chamados chefes políticos e bandidos com seus verdadeiros exércitos de cangaceiros espalhado pelos sertões adentro. De tal sorte que, além do dinheiro e do latifúndio, o número de jagunços era um status de poder. Um patrimônio garantidor de segurança e de respeito. Uma maneira de se estabelecer como líder maior diante dos demais potentados regionais.

A justiça, por seu turno, era uma ficção das mais distantes – uma abstração um tanto quanto estranha e mirabolante. Crença para os quem não conheciam de perto a dura e difícil realidades vivida pelos povos dos sertões.

Ter jagunços era uma certeza de se estar seguro diante do caos daquele fim do mundo. Um ingrediente a mais que muito impulsionou o próprio fenômeno do cangaço disperso pelas paragens dos sertões nordestinos e caririenses.

O grupo de aurorense prosseguia em sua viagem...

Caminhos desfigurados – obstáculos que só poderiam ser vencidos pelos almocreves da vida nas suas longas e repetitivas incursões; ligando o Crato, Icó e Juazeiro ao Cariri como todo. Mas era preciso. Dizia os dois coronéis da Aurora. Devidamente montados em seus animais formosos.

Um pouco atrás, as duas consortes em silêncio ao lado do serviçal tomando conta dos animais que conduziam mercadorias. A criança já adormecida carregada na lua da sela estava sob os cuidados da mãe. Na retaguarda dois caçuás que, ao que tudo indica, estavam repletos de encomendas, pertences importantes e gêneros de primeira necessidade. Mantimentos para a viagem e para os dias que fossem preciso permanecer em Juazeiro.

O frio começava a se transforma numa garoa. Tudo escuro.

O grupo finalmente deixou a rua grande aos pouco adentraria o velho beco que dava para o riachinho divisor da Aurora Velha e o começo do quadro da igreja. Pegariam de vez a estrada dos almocreves que margeava o Salgado na direção do alto Cariri. Subiram o morro em meio a verdadeira floresta de oiticicas, cedros e carnaúbas nativas.

Os olhares dos viajantes agora estavam todos voltados para as bandas da Ingazeiras, situada mais à frente, a cerca de quatro léguas.

Tudo ainda estava escuro. Os animais de montaria pareciam exímios farejadores de veredas mal iluminadas. Tinham pressa mais que as pessoas que os montavam. Logo deixaram para trás as ruínas da capela de São Benedito de costas para o rio defronte para o local onde um dia existiu a taberna da lendária Dona Aurora. Algarobas e tamarindos é tudo o que restou naquele lugar.

As duas mulheres com seus véus sobre as cabeças fizeram, uma vez mais, o sinal da cruz. E os homens as imitaram em obediência ao sagrado. Apenas o menino Tonheta não seguiu o rito da persignação, posto que já começava a cochilar na lua da sela sobre o colo cuidadoso do bom ajudante.

E o caminho parecia se alongar pela frente, malgrado os animais aumentarem cada vez mais suas passadas na direção do Sul caririense.

A cidade ficou definitivamente para trás. Não se via mais a torre da igreja. A mata agora dava o tom do ambiente. Cantos de pássaros anunciavam o fim daquela madrugada frienta em suas derradeiras despedidas. Riachos com águas correndo na direção do Salgado. Logo chegariam ao caudaloso Caiçara, o fundo Jenipapeiro, a forte correnteza do riacho dos Porcos. Mas antes deste último, o povoado de Ingazeiras. Imensos lamaçais, elevações, morros e descidas íngremes. Matas fechadas. Aromas de flores silvestres.

Poucas casas. Era tudo que constituía aquele ambiente dali para frente. Na estrada velha da catingueira a primeira parada para um gole d’água. O sol agora já estava desperto, rompia as primeiras fimbrias do nascente As matas fechadas da caatinga aurorense agora se apresentavam em toda a sua exuberância natural. O mundo em volta dos caminhantes era todo verde em meio a um colorido cada vez mais diverso. Um contraste da terra com o azul dos céus.

O verde e o cheiro de flores dos matos enchiam as narinas, tanto quanto os olhos dos viajantes. Cantos de pássaros alegres, chiados do vento sob as copas altas das árvores. Espinhos e perfumes tocavam vez por outra os corpos suados dos que margeavam os caminhos.

O grupo agora passava pela Ingazeiras, mas não fez parada. No terreiro das casas dos conhecidos os dois coronéis disseram que tinham pressa. Apenas cumprimentaram com um tradicional aceno de mão e a promessa de que na volta, quem sabe, parariam para uma conversa e um café com bróa.
Uma carta havia sido enviada dias antes por um portador ao padre Cícero avisando-o daquela visita. Preocupações, política e negócios, Quem saberia ao certo?.

Cândido do Pavão quisera saber do que realmente trataria a tal missiva. Mas o portador era de confiança e não deu com as línguas nos dentes. Ninguém até hoje soubera na verdade do que mais tratava a carta que fora remetida ao velho padre. À boca miúda corria a notícia de que Aurora sofreria um ataque de malfeitores. Era tudo que se sabia. Totonho de Monte Alegre - o prefeito, tinha consciência da gravidade. Saberia que seu posto estava em jogo. Ainda assim tentou arquitetar a resistência, mas por fim percebeu que estava isolado. Perdera o apoio do próprio presidente do estado. Vários dos seus antigos amigos agora desejavam a sua cabeça. Foi aconselhado pelos que restaram a fugir. A única alternativa inteligente que lhe restara. Temeu por sua família. Seu patrimônio estava condenado à sanha dos criminosos.

O delegado Róseo foi igualmente destituído, e o Florêncio da força do estado convocado as pressas a deixar a cidade. O próprio Estado deixaria Aurora entregue aos seus inimigos. Poucos eram os que queriam tratar do assunto sem reservas... A vila seria invadida e saqueada inapelavelmente. Como de fato o foi. Uma catástrofe.

Os coronéis continuavam(com os seus) em caminhada na direção do Juazeiro. Tentariam o último recurso no sentido de evitar o pior.

Subiram a serra agora com passos lentos. Queriam preservar os animais de um cansaço ainda maior, mesmo após terem bebido rapidamente na vila. A Ingazeiras ficaria também para trás. Alto da boa vista, ponta da serra, goiabeira e Cajuí. De lá se via a ponta do Morro Dourado e o riscado do rio Salgado como uma enorme serpente se arrastando sobre o fértil e sagrado solo do vale, na época coberto pela densa floresta aurorense.

Mais uma parada para um gole de água, agora sob a aprazível sombra de um imenso Jatobá na subida do sítio Cajuí.

Tinham pressa. Prosseguiram de novo.

(....) CONTINUA...

Não Perca!!

(*) Parte integrante do livro – “Lampião em AURORA... Antes e Depois de Mossoró” (JC/inédito 2011).

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