Dona Fideralina - Texto: Raquel de Queiroz
Em uma conversa sobre mulheres, feminismo e literatura chegamos às matriarcas nordestinas. Partimos da ideia tradicional da "mulher brasileira",figura poderosa, sedutora e dona de uma linguagem corporal que desafiaria os modelos clássicos da mulher oprimida dos países metropolitanos. É uma imagem que, apesar de não corresponder necessariamente à realidade da vida social brasileira, não deixa de ter uma imensa força simbólica no nosso imaginário cultural. Procuramos então suspender qualquer juizo de valor sobre a justeza da idéia que se faz sobre a "mulher brasileira" e pensar qual seria a versão nacional correspondente à mulher européia da era vitoriana. Foi neste ponto que vieram à tona,de forma quase inesperada, os feitos e as figuras de personagens com D. Federalina de Lavras, D. Barbara de Alencar ou a mais obscura Marica Macedo até hoje lembradas e recriadas nas histórias da região do Cariri. Foram elas matriarcas semi-lendárias, proprietárias de terra e gado no interior do sertão longe das pretenções fidalgas das Casas Grandes da zona açucareira. Levavam uma vida rústica relativamente distante dos padrôes culturais europeus que, na época, moldavam as sociedades do litoral nordestino. No sertão, exerciam grande poder de liderança, tendo controle total de seus feudos regionais.
Tá aqui que Dona Federalina mandou ...
Dona Federalina reuniu no Sítio do Tatu os cem cabras que havia conseguido juntar com a ajuda de outros coronéis da região. Deu ordens para que seguissem rumo a Princesa, na Paraíba. O grupo de cangaceiros iria vingar a morte de seu nego, Ildefonso Lacerda Leite, médico que logo após formado pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, começou a exercer a profissãoem Princesa, terra de seu pai, Luís Leônidas Lacerda Leite (Legítimo Ladrão de Lavras - diz o povo), marido de Joana Augusto Leite, filha de Federalina.
Lá, Ildefonso casou-se com Dulce Campos, filha de um chefe político do município, coronel Erasmo Alves Campos. Com esse casamento, o Doutor precipitava a própria sorte. Manoel Florentino desejava ter Dulce por esposa. Enraivado vendo-a casar-se com o forasteiro Ildefonso resolveu vingar-se. Junta-se a José Policarpo, ex-aluno do Seminário da Paraíba, ligado ao vigário de Princesa, Manoel Raimundo Donato Pito. O vigário se opunha ao doutor, acusando-o de ateu. Em 6 de janeiro, feriado do Dia de Reis, Florentino e Policarpo mataram, com uma punhalada no peito e um tiro no coração, o nego de Federalina. O moço ia à farmácia providenciar remédios para acudir aos antojos da mulher. Após o crime tentaram os criminosos enterrar o cadáver. Mas, por imperícia, deixaram o corpo com os pés de fora.
Vingança pior aguardava a dupla de assassinos. A velha Fidera despachara o seu estranho exército com a incumbência de lhe trazer as orelhas de cada um dos assassinos do neto. Não era à toa que se dizia nas Lavras que a velha do Tatu rezava toda noite num rosário feito das orelhas de seus inimigos mortos: queria aumentar a coleção.
Esse crime de Princesa, ocorrido em 1903, marca o início da projeção de dona Federalina para além dos sertões do Cariri, e a extensão da sua influência junto ao governo do Estado. Nascida em 1832, em Lavras, batizou-se por Federalina, graças aos entusiasmos republicanos, provocados pelos movimentos revolucionários no Nordeste no Levante de 1817 e na Confederação do Equador em 1824. Familiarizou-se desde cedo com o poder. Era a mais velha de doze irmãos; o pai, chefe político na região de Lavras, João Carlos Augusto, descendia de família poderosa. Teve ele por padrinho de batismo o então presidente da Província do Ceará, João Carlos Augusto de Oyenhausen e Gravemburg, marquês de Aracati, em cuja homenagem recebeu o nome.
Sítio do Tatu - Lavras da Mangabeira
A mãe de Federalina também se envolvia com política. Isabel Rita de São José, a velha Zabilinha, era neta de Francisco Xavier, segundo capitão-mor e comandante geral da vila de Lavras, sesmeiro da ribeira do rio Salgado, proprietário de grandes extensões de terra.
Se o pai, João Carlos Augusto, era afilhado do presidente da Província, o batismo de Federalina já é prenúncio de sua força de vontade, de seu desprezo por regras estabelecidas, de seu temperamento forte, de só fazer o que desejava. O padrinho da filha podia não ser de igual importância, mas em compensação o celebrante da cerimônia foi o padre Verdeixa, figura antológica e curiosíssima dos sertões nordestinos. Pai de família, era o Padre Verdeixa nascido no Crato, ou em Goiana, ou em Olinda; foi vigário de Lavras de 1830 a 1832. Mestre em ações indecorosas, fazia propostas imorais às noivas dos casamentos que celebrava. Foi mesmo espancado por um noivo que não pôde suportar os excessos do padre.
Quando João Carlos Augusto morreu, aos 56 anos, vítima de um atentado político, Federalina, já estava casada; sendo a mais velha de três irmãos fracos e de oito irmãs que não viam a mulher em posição de mando, assumiu o poder como herança maior.
Casara-se nova, aos 15, 16 anos, com Ildefonso Correa Lima, major da Guarda Nacional, nascido em Várzea Alegre, distrito de Lavras; filho do tenente Raimundo Duarte Bezerra e de Ana Correa Lima, donos de muitas fazendas. Recém-casada, Federalina já tinha fama de mandona, tanto que a família do marido não aprovou a união. Eram contra, não queriam ver Ildefonso submisso à mulher. Mas não foi uma submissão duradoura. Ele morreu ainda jovem, aos 42 anos, depois de ser presidente da Câmara de Levras. Deixou uma dúzia de filhos e um certo poder político que logo foi assumido pela mulher.
Herdeira de dois grandes chefes, acostumada ao poderio, não admitia oposição. Sendo preciso, esqueceria a religião e lutaria até contra a Igreja. Monsenhor Miceno Clodoaldo Linhares, vigário em Lavras por 49 anos, de 1879 a 1925, que ousou opor-se a Federalina, provou-lhe o ódio. Era conhecido pela sua retidão de caráter, pela facilidade para o discurso, tinha a admiração do clero. Mas tinha uma mancha na vida. Quando jovem, tivera uma filha em Tauá. Federalina levou a peito tornar público o erro do vigário. Monsenhor Miceno, ao partir de Lavras, profetizou que as crianças daquela época veriam a queda de Federalina. Errou: passou-se muito tempo até o dia em que ela, ou os seus, não conseguiram eleger o prefeito. Mesmo o sucessor de Monsenhor Miceno, Padre Raimundo Augusto Bezerra, sobrinho-neto de Federalina e líder oposicionista, sofreu muito nas mãos de Fidera. As piores calúnias foram levantadas contra ele.
Mas Federalina não tinha inimigos só entre os estranhos, a família também a enfrentava. Seu filho, Honório Correa Lima, foi uma das vítimas da ira materna. Após certo tempo na prefeitura de Lavras, foi eleito deputado, tendo que permanecer longo tempo em Fortaleza. E Honório acreditava estar perdendo suas bases políticas com as longas estadas na capital. Assim, com o prestígio conseguido junto ao presidente da província, articula, à revelia da mãe, sua nomeação para retornar à prefeitura de Lavras. Para isso seria necessária a deposição do prefeito Manuel José de Barros, homem da confiança de Federalina.
Gustavo Augusto Lima Honório Correia Lima
Estava criada a confusão. A velha, com o orgulho ferido e influenciada por um outro filho, Gustavo Augusto, tenta primeiro convencer Honório a abdicar do cargo. Apela para os nove meses em que o carregou na barriga. O argumento não surtiu efeito. Honório respondeu que, se o problema era o tempo de gestação, poderiam fazer um trato: ela que afinasse a cabeça para lhe entrar pela "traseira", e ele a carregaria durante nove meses sem reclamação.
Mas Fidera era incansável. Teimou em convencer o filho até o dia em que ele tomou de um rifle e apontou para a barriga da mãe. Essa afronta, somada à morte de Ernesto Rolim, cabra de confiança da velha, atribuída a Honório, e às ameaças de Honório ao irmão Joaquinzinho, a quem proibiu de aparecer na casa da mãe, por acreditar que fosse ele a origem das atitudes da velha, levaram-na a reunir um bando de cabras com os coronéis mais fortes do sertão: Domingos Furtado de Milagres, Sant'Anna de Missão Velha, e Eliera Cruz.
Esses jagunços, em grande parte recrutados no Sertão de Pernambuco, - Serra do Araripe, região do Riacho do Navio, Pajeú de Flores -, (que viria a ser o berço de Lampião), eram homens que faziam do cangaço sua vida, e foram os responsáveis pela deposição do "Torto", apelido de Honório, que era caolho. Escorraçaram-no de Lavras, com mulher e filhos; mudou-se para Fortaleza, e posteriormente para Caririaçu. É a primeira vez em que a misericórdia dá mostras de existir em Federalina. Em casos de deposição, matava-se o deposto. Mas, na deposição de Honório, os homens tiveram ordem expressa de não acertar sequer um tiro no Prefeito. A velha Fidera avisou que quem o fizesse pagaria com a própria vida. Ninguém desobedeceu.
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Fonte: Matriarcas do Ceará
Rachel de Queiroz & Eloisa Buarque de Hollandawww.pacc.ufrj.br - In Blog do Cariri Cangaço.
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