De acontecimentos que de algum modo substantivo assinalaram para sempre a vida social da nossa urbe. Quantas figuras humanas das mais simples às mais importantes continuam ainda agora eternizadas no livro dos anos e nas paredes das nossas recordações memorialistas. Quantas saudades históricas e afetivas estão ainda hoje impregnadas nas nossas memórias mais latentes e adormecidas, como poeira de antigas estradas se dissipando aos poucos por todas as léguas tiranas do tempo e da vida?
Quantos causos, quantas estórias e histórias. Quantas fatalidades, quantos instantes felizes, quantas injustiças, quantas tragédias que agora se misturam num turbilhão relembranças em meio ao presente insosso das nossas vivências cotidianas. Quantos momentos inesquecíveis. Quantas cenas indeléveis. Quantas passagens inexoráveis. Quantas coisas ainda por lembrar, quantas queremos esquecer. Quantos conflitos, quantos traumas existenciais guardamos no nosso baú de ossos ou simplesmente os carregamos como tesouros ou mesmo como fardos pesados sobre os ombros e sobre as nossas costas.
Quem conseguirá talvez passar incólume a todos estes anos e não ser tocados de alguma maneira pela força descomunal destas recordações ressabiadas e dolentes. Como se fossem folhas espinhentas de cansanção e urtiga a nos acordar do sono letárgico do tempo presente em que estamos(de certo modo) mergulhados.
Saudades e saudade... Relembranças de uma Aurora passado, provinciana e alvissareira. Quando as pessoas eram movidas pela solidariedade de grupo num mais absoluto senso prático. Um mundo social de uma gente centrada na comunhão da amizade, quase como uma profissão de fé. Sem nenhum ranço de egoísmo ou esperteza onde as preocupações de um futuro distante, não iam além de injunções carcomidas no mais das vezes paroquiais.
Remoção de uma vida quase que exclusivamente bucólica, de uma sociedade um tanto medieva e familiar.
Quem conseguirá talvez, não sentir saudade?
Das antigas alegrias compartilhadas numa sinergia jamais vista. Dos momentos inquebrantáveis dos anos idos. Da ânsia que alimentava o contentamento de se esperar todos os dias o trem na velha estação. Da festa do santo padroeiro animado pelos leilões gritados por Romão Sabiá, dos toques do sino e o velho relógio da matriz. Do som do antigo órgão e do violão de Joaquim Paulino. Das missas antológicas e dos sermões quase proféticos e beneditinos do Monsenhor Vicente, Padre Luna e Padre França. Das beatas e dos fiéis e devotos levando os quadros de santo para “Benzer”, dos frascos de água benta e da festa que era o domingo de ramo. Dos tempos estudantis do colégio paroquial. Dos grupos de jovens e escoteiros.
Dos artistas mambembes do meio da feira, dos cantadores de viola, do circo dos irmãos: Fuxico, Enoque pintor e Lurdes Bom-Conselho. Dos parques de diversão, do pau de sebo, das quadrilhas juninas do Araçá, do café da estação de Maria Rocha, do pastel de Vicência Marcel, da banda de Esmerindo cabrinha, dos banhos de rio na barragem do Salgado quando não havia ainda a ponte. Das matas fechadas e da safra das frutas.
Das histórias de jagunços e cangaceiros que nos contavam. Das estórias de trancoso e da lenda de Vicente Finim que nos causavam medo. Das inesquecíveis noites de natal e dos folguedos juninos. Das antigas festas no pátio da igreja e na ABA. Das novenas de maio e das renovações festeiras nos sítios e na cidade. Dos forrós de pé-de-serra sob as músicas de Abdias, Messias Holanda, Marinês, Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga, Trio Nortista e Nordestino e tantos outros artistas do povo que ouvíamos pelo rádio, alto-falantes dos parques e a difusora da cidade.
Dos namoros sem maldade no banco da pracinha e das tertúlias caseiras ao som da radiola de discos. Dos jogos do Maguari dos sapateiros, do Ceará de Jarim Barros, do Santos de mundinho Padeiro e do 15 de julho do Dr. Bastim. Do patronato e da escolinha de Socorro Araripe. Da antiga Cnec que funcionava no casarão do cel. Xavier. Dos belos desfiles da miss aurorense – a rainha do município, das imortais paradas de 7 de setembro. Da fila para cantarmos o hino na escola. Do catecismo para a primeira comunhão. Do romantismo escolar dos educandários. Das revistas em quadrinhos e de mulheres peladas que escondido, olhávamos no banheiro com medo de uma surra quando fôssemos pegos.
Saudades de antigos profissionais: barbeiros, sapateiros, chapeados, alfaiates, botadores de água, vendedores de lenha em jumentos, das lavadeiras e engomadeiras de roupas com ferro de Brasa. Das parteiras que muito chamavam de cachimbeiras, seleiro, rezadeiras, ciganos, doidos viajantes, raizeiros, flandeiros, açougueiros em suas bancas de carnes espalhadas pelo velho mercado. Enfim, saudades das figuras populares que marcaram, tanto quanto algumas autoridades, a vida cotidiana da nossa cidade. Saudades dos ébrios clássicos. Dos conhecidos freqüentadores do cabaré da beira da linha e suas “raparigas” valentes a que todos conheciam pelo nome.
Saudade dos farmacêuticos (os médicos daquele tempo) e dos dentistas práticos com seus temíveis alicates quase similares aos que serviam para o conserto do motor da luz. Saudade dos agentes da estação, do som do velho telégrafo, do toque do sino e do apito do trem depois da passagem do corte grande. Saudade dos primeiros automóveis: do gordinho, aerowillis, do jipe, da rural, do velho caminhão à manivela, do misto da feira, do fusca e do maverick disputando espaço pelas ruas estreitas com as carroças, carro de boi e os cavalos baixeiro dos fazendeiros potentados.
Lembranças das narrativas tristes de assassinatos históricos, dentre os quais do farmacêutico quem matou a esposa(em defesa da honra) e foi absolvido, da mátir Francisca que foi barbarizada, bem como do coronel Izaías Arruda no trem da feira pelos irmãos paulinos, caindo em seguida na pedra da estação. Da trama de Lampião junto com seu bando na Ipueiras com vistas a invasão de Mossoró. Do célebre fogo do Taveira. Das acirradas disputas eleitorais, da festa do nosso 1º centenário marcado pelo discurso eloqüente do ínclito literato do Cariri - Joarivar Macedo. Saudade dos quadros de Aldemir, das esculturas de Nego, dos versos perfeitos de Serra Azul. Da malhação do Judas, das rezas da semana santa, das estórias de botijas, alma penada, crimes e castigos. Dos improvisos literários do vate Dantas Quesado, das narrativas de Hermenegildo, dos anos áureos da Cooperativa instigado pela produção do ouro branco – o algodão.
Do ciclo da rapadura, do milho, da oiticica, dos antigos cambistas do jogo do bicho, dos vendedores de loterias e dos valentes admiradores do comunismo histórico, escondidos em seus encontros políticos distribuindo O Democrata: seu Biró, Vicente Ricarte do Araçá, Seu Gonzaga e tantos outros camaradas admiradores de Lênin, Grabois, Ever Hosxa, Brizola e Fidel Castro.
Saudades das bancas de bugigangas da feira-livre, da garapeira do seu Sinhô, das comidas caseiras, dos bolos de milho e de puba na palha de bananeira e de cordéis de José Bernardo. Da festa da sociedade da ABA, das viagens de trem ao Juazeiro. Dos antigos e inolvidáveis cafés de Sabina, Zé Quinze, Maria Secundina, Terezinha de Américo, Chiquinha, Dona Fransquinha e Miriam... Saudades dos velhos marchantes, carroceiros, donos de engenhos, dos vendeiros e botadores de águas e de lenha com seus feixes em lombos de jumentos. Dos guarda-chaves da estação, dos guardas noturnos – Inspetor de quarteirão - , dos cambiteiros e cortadores de cana, dos antigos canaviais adornando a paisagem da Aurora.
Dos banhos no rio, das safras de frutas maduras, dos peixes das invernadas, das enchentes do Salgado, das cheias dos açudes, das época de secas, das frentes de emergência, dos bodegueiros de antigamente, das festas dos casamentos na matriz, do cinema e da escola do Círculo Operário, da meninada gritando com o palhaço da perna de pau, do futebol de várzea, das brincadeiras de rua, do bate-papo das pessoas todas as noites pondo suas cadeiras nas calçadas, das antigas residências enjardinadas, quando não havia ainda o medo da violência e dos ladrões do mundo.
Saudade das ruas de terra, das casas de tijolos de piso liso e da periferia de taipa de chão batido, dos vendeiros pelas portas, das pessoas carregando água na lata e no galão. Da venda de comida na pedra da velha estação. Do pote ou da Cantareira. Do rádio de pilha. Da penteadeira, do sabor das comidas caseiras e da música sem apelação prenhe de romantismo, poesia e emoção.
Tudo o mais agora em Aurora é só saudade. Todo o resto é pura lembrança e solidão, além de uma imensa vontade de voltar ao passado, rever novamente todas estas coisas, as pessoas e os amigos de um tempo ido que não volta jamais.
José Cícero
Secretário de Cultura
Aurora-CE.
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