sábado, 1 de novembro de 2008

Meu baú de ossos e o colégio Agrícola do Crato

Há muitos anos, ainda nos idos de 1985, século passado, outro milênio... Tive um grande amigo, poeta tímido, tanto quanto eu – calado, introspectivo. Razoável domínio do vernáculo, quase um espert idiomático. Mostrou-me seus poemas hai-kai, 'dísticos', cordéis, sonetos...
Disse-lhe que tinha jeito para poeta. Ele aquiesceu num sorriso raro e cabisbaixo.
Trejeito impávido, sisudo, míope da vista, óculos fundo de litro...
Inteligente via muito além das lentes. Era um exímio construtor do estro.
Por intermédio da literatura, discutíamos a rotina da vida, a monotonia do colégio e as coisas do mundo.
Era como se diante dos livros nos fizéssemos gigantes. Titãs poemáticos que escolheram a literatura como um caminho. Mostrei-lhe meu opúsculo na época, ainda em rabisco.
Ele admirou-se e em seguida ficamos bons amigos. Lemos, estudamos, escrevemos, biblioteca farta, assim como a nossa juventude. Dali para frente a poesia libertou-nos do medo de sermos chamados de poetas. Achávamos por demais ridícula aquela afirmação. Ser diferente não era o nosso desiderato.
O que queríamos era simplesmente nos embriagar da eterna poesia de Lorca, Neruda, Bandeira, Poe, Augusto, Florbela, Vinícius, Patativa, Rimbaud, Drumond, Quintana, Baudelaire, dentre outros... Porém, não demoraria muito para que a professora nos delatasse à turma inteira.Com direito a leitura dos nossos primeiros madrigais.
Marcial Ferreira era seu nome, filho do Ipaumirim, para o qual fizera um soneto. Verdadeiro hino oferecido a sua Alagoinha. Tempo áureo do nosso Agrícola Colégio.Internato para os primeiros, utopia para nós todos. Chão fértil e rico das serras do Crato-CE; sopé do Araripe. Tempos idos, pleno de lirismo e sonhos em se mudar o mundo. Saudade de casa e da namorada, que quase nunca nos escrevia. Trabalho árduo, enxada, regador, calos nas mãos. Estudo noturno obrigatório, dias de cansaço e solidão. Bucólico esforço, ideal parasidíaco. Sofreguidão! Mata virgem, virgens meninos e meninas, virgem poética adormecida nos nossos cadernos de exercícios.
Os anos se passaram. Fim do período... Cada um seguiu para o seu lado. O mundo depois disso pareceu-me muito mais imenso: geodésico sentimento que eu ansiava pegar com as minhas próprias mãos. Nunca mais tive notícias dele. Não sei se vive ou se a vida se desfez do mesmo. Quem sabe aquele amigo tenha optado por se encantar de vez na serra do Crato, junto a sua poesia- a musa que nos fez acreditar nos sonhos e outras utopias. Ou ainda, quem sabe, mergulhara no seu poema mais triste à guisa de se proteger de um mundo ingrato. Como só seria possível a um poeta-amigo, vate singularíssimo da palavra, na mais humana disposição lídima do gesto.
O Agrícola agora, assim como ele(meu amigo), é uma miragem estranha perdida nas brumas de um passado longínquo. O tempo passou célere como sempre passam os bons momentos. Século pretérito... Deixando uma história de sonhos 'profissionalizantes' aprisionada no futuro do presente. As coisas mudaram de lugar, como de aparência e de sentido. Assim como todos os colegas do velho colégio. Nossos mestres, alguns desapareceram para sempre. Restando apenas a saudade e os conhecimentos perpetuados entre os seus discípulos. As árvores cresceram como se nelas se eternizassem todas as primaveras e a brancura teimosa dos nossos cabelos. Sulcos nos caminhos, rugas profundas dos nossos rostos como se fossem ainda hoje, as nossas idas e vindas sobre as serras verdejantes do belo Crato. A poesia por seu turno, deu sentido e um colorido especial à vida. Como um acerto de conta do presente com o passado. A ampulheta do tempo fincou nos nossos rostos de pedra, uma indisposição estética para a juventude. Nossos semblantes agora travam todo dia um novo combate com os espelhos. Como se o juizo final acontecesse numa sucessão irreversível todas as manhãs na nossa face. Somos por isso agora, grandes desconhecidos íntimos, perdidos na multidão de nós outros.
Quisera apenas que aquele poeta-amigo do velho Colégio Agrícola do Crato pudesse ao menos saber que a poética, assim como as lembranças, ainda permanecem comigo, como frases perdidas nas páginas soltas e amareladas de uma coletânea de reminiscências guardadas num baú de ossos.
Uma obra carcomida e ultrapassada que quase ninguém tem mais coragem de relê-la. Quisera saber do meu amigo, para finalmente abraçá-lo forte e poder dizê-lo que aquela minha poesia lírica e utópica agora virou verdades, esperanças e livros.
Recordações de um passado que nunca passa... E que se mantêm guardado para sempre no fundo das nossas memórias.
Por: José Cícero
In Overmundo

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